A curiosidade sempre conviveu comigo. Creio ter sido o primeiro sentimento a se aperceber e certamente o mais difícil , ou impossível de deixar-me. Já sexagenário, a índole da bisbilhotice permanece lépida, fagueira em meu ser. São hilárias as histórias que cataloguei ao longo dos anos. Foi responsável pela formatação das minhas incompreensões, utopias, relações imagéticas, contradições, duvidas, certezas, no aspecto cultural, ideológico, filosófico, religioso.
É hereditário, mamãe gostava de perguntar. Pastores e missionários que chegavam a Matinha, na primeira oportunidade, eram testados em seus conhecimentos bíblicos. Embora respeitasse a todos os ministros religiosos, regra basilar para os presbiterianos, se permitia retrucar, quando a resposta não a agradava, e se o interlocutor ficasse ressentido, usava o argumento maior, citando dois próceres que conheceu : – “ora se nem o reverendo Adiel ou Almir se zangaram comigo, por que esse pastor vai” ?
Referia- se a Adiel Tito de Figueiredo e Almir André dos Santos, legendários servos de Deus, que pastorearam a IPIB- Igreja Presbiteriana Independente do Brasil – do município, nos meados do século passado. Devido defeito físico de nascença, procurei entreter-me na apreciação de revistas, livros, fotonovelas, visando fugir do trabalho na roça, ao qual os irmãos eram obrigados para sobreviver. Obviamente, que essas ações não eram feitas só por mim, havia por trás a formidável ajuda de três ardilosas, astutas mulheres: vovó Lola, Tchem e mamãe.
Passo a passo, davam suporte aos meus desejos. O resultado era o esperado, ora se uma mulher sozinha, consegue impor suas ideias, imaginem três! Fui poupado de pescar, mexer farinha, fazer quaisquer outras atividades dos demais. Numa análise estatística avulsa, creio que nem cheguei a 10% do que meus irmãos trabalharam. Embora fossemos pobres, nossa família tinha uma certa aptidão a leitura, consequentemente, a indagações. Mamãe citava alguns autores e autoras americanas, que traziam histórias da colonização dos EUA , dentre elas, a clássica obra A Cabana de Pai Tomás, da escritora e militante abolicionista estadunidense, Harriet Beecher Stowe.
Através das mulheres que rondavam minha vida, fui ensinado precocemente no caminho da leitura. Vovó Lola era cega, grande parte dos meus parentes, quando chega na terceira idade, adquire glaucoma, não lia, mas, igual as duas filhas, mimava e estimulava o neto a fazê-lo, especialmente a Bíblia. Dessa forma, cumprindo a seleção natural de Charles Darwin, comecei a usufruir do cenário proporcionado. Os irmãos do segundo casamento, aproveitaram, e na primeira oportunidade, procederam como a maioria dos baixadeiros, mudaram-se. Um pra São Luís, o outro pra Fortaleza.
Papai, ainda sagico, mantinha o encargo de fazer roças, farinhas; trabalhar na oficina, fabricando lamparinas, consertando fornos, alambiques, já quase inexistentes. Além disso, pescava de anzol, choque, para o nosso sustento. Lauro, casado, com filhos, laborava como padeiro, caçava, e sempre ajudava quando mexíamos farinha. Eu ia esporadicamente na lavoura – sempre com as costas quentes -, pescar com mais efetividade, notadamente de anzol a noite, bagrinhos e jandiás; as vezes, consertar um forno ou outro, com papai. Então, todo resto do tempo, fazia aquilo que adorava, perguntar, questionar, debater, aprender
Lia tudo que me chegava as mãos: gibis em quadrinho, mandados pelos primos; revistas O Cruzeiro, retalhos – O Estado do Maranhão, Imparcial, Jornal Pequeno-, achados na rua. Matemática nunca foi o meu forte, predileção por história, geografia, um pouco de gramática. Muitos os episódios pontuaram minha infância, quanto a essas particularidades. Certa vez, quase boto Tchem maluca em Viana, para conseguir algumas revistinhas.
De outra, deixei uma professora em saia justa. Ao ouvi-la, numa aula de história do Brasil, dissertar sobre o dia Sete de Setembro, inquiri: professora como é que a história mostra muitas lutas, rebeliões, os portugueses chegaram até a matar Tiradentes, e Dom Pedro I consegue com um simples grito de “independência ou Morte” libertar o Brasil? Passei a infância com a fama de querelante, polemico, leitor contumaz. Angariei amigos/ amigas, entre mestres e colegas, também, alguns desafetos. O que creio, só não foi mais forte, devido minhas duas mães : Tchem, por ser enfermeira, parteira, respeitada na profissão; mamãe, pelo ativismo em favor dos filhos.
Capaz de se envolver – isso aconteceu bastante -, em brigas memoráveis defendendo seus rebentos, não era de bom tom, verdade por todos conhecida, ter Maria de Lola como adversária. A realidade, o ambiente, a imperiosa necessidade que tinha pra evoluir, me obrigavam traçar uma estratégia, um método, visando consegui tal intento. Fui compelido a ler tudo que aparecia na frente. Guardei uma lembrança ilustrativa : na infância, mamãe me mandava comprar no comércio de seu Melques, que ficava um pouco distante de onde morávamos. Quase todas as vezes demorava mais que o necessário, devido a perda de tempo lendo folhas de publicações encontradas na rua.
Assim, pavimentei a formação literária, intelectual. Outras atividades incorporaram-se com o tempo. Revistinhas infantis da Disney, (tio Patinhas, Pato Donald, Mickey e Pateta etc.); Bolinha, Luluzinha. Recruta Zero, Tex Willer, Superboy etc. Livros, digamos mais adultos, como Tarzan. Apesar da pouca idade li Drácula, de Bran Stoker, que Tchem guardava numa das gavetas da sua cômoda. Havia espaço ainda para as de cunho político, esportivo, sentimental, Realidade, Placar, Sétimo Céu, O Cruzeiro. Ou seja, o ecletismo imperava.
A evolução para bolsilivros de faroeste, espionagem, guerra, veio automática. Na adolescência já vagueava por estes estilos, intercalando com as revistas de fotonovelas, capricho; o indefectível seleções do Reader’s Digest, segundo o google, até hoje o periódico mais lido do mundo, que trazia embutida mensagem subliminar – as vezes nem tanto -, enaltecendo virtudes capitalistas dos americanos, contrapondo-se ao comunismo soviético.
Ficaram na memória, as intensas procuras de bolsilivros, revistinhas, com Cecé e Nonato de dona Nhadica; Edilson de Tancredo, que morava em Viana, mas vinha constantemente a Matinha, sempre trazendo novas edições, que eram avidamente devoradas. Um desses companheiros de aventura, nunca mais conseguir encontrar: João. Residia onde hoje é o bairro de Santa Maria, com uma senhora, idosa e cega, de nome Margarida. Não guardei o grau de parentesco entre eles, acredito ser ela sua avó. Era conhecido por João de Margarida. Formávamos um quarteto insaciável, ele, eu, Cecé e Nonato. As edições transitavam entre nós celeremente.
Frequentava regularmente a biblioteca municipal, o mundo do saber abria-se Ali aflui as obras de Machado de Assis, Jorge Amado, Dalton Trevisan, enciclopédias, dicionários, dentre outras.
Surgiram os questionamentos ideológicos
Criado numa família pobre, mas orgulhosa em ter parentes que ajudaram na criação da cidade, acreditava na família pioneira e nos valores capitalistas, obviamente, odiando o comunismo. Por curiosidade, decidi ouvir músicas da MPB, em contraponto ao que era comumente tocado nas rádios, Jovem Guarda; meu senso crítico passou a ser aguçado. Incorporei os sentimentos esboçados nos personagens menos adocicados de autores como os citados acima, juntando-os a poetas, poetisas, cantores, cantoras, com mais preparo em letras e músicas.
Desse modo, Lima Barreto, José Lins do Rego, Artur e Aloisio Azevedo, Raul Pompeia, Josué Montello, Castro Alves, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, José Saramago, João Cabral de Melo Neto, Cecilia Meireles, Rachel de Queiroz; secundados por cantores e compositores do naipe Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina, Raul Seixas, Guilherme Arantes, dentre tantos, passaram a conviver comigo, e literalmente, mudaram minha vida.
Some-se a isso, algumas leituras rápidas e clandestinas em revistas tidas por adultas, como Playboy e congêneres. Esses conceitos, fundamentos, chegaram sorrateiros, instalaram-se. Trouxeram, em função do instante, outras configurações: as emoções relativas ao comportamento, importantes no sentido psicológico, sexual, religioso, cultural.
Sentimentos mais dispares possíveis, acumularam-se naquele ser franzino, notoriamente avesso a trabalhos braçais, que sabia precisar de uma válvula de escape para melhorar o status quo. Longo e penoso processo. Estabeleceu-se assim, a fama de alguém que gostava de estudar, ler, e era, muito, bastante, curioso; polemico, questionador, as vezes, inoportuno. O embrião de um espirito belicoso, com viés filosófico, apaixonado por História e com o sonho – no fundo da alma -, de escrever crônicas que satisfizessem aquela ansiedade que me consumia, como fogo no monturo.
Essas sensações ficaram inibidas, tolhidas, escondidas em algum lugar da alma. Subjugadas pelo adulto real tentando sobreviver na sociedade consumista, cujo síntese é : subir na vida, casar-se, ter um emprego, formar família, com filhos, casa; ser um cidadão civilizado, cristão, como aquela pessoa tão bem construída no poema cantado pelo cearense Belchior, Conheço Meu Lugar:
“O que é que pode fazer o homem comum/nesse presente instante/senão sangrar tentar inaugurar/a vida comovida/inteiramente livre e triunfante.” O Peter Pan cresceu, ou foi crescido. Estudou, terminou o ensino médio, casou-se, prestou concursos, em uns não passou, em outros sim, enfim tornou-se cidadão. Embora moldado pelo dispositivo – e isto não é uma crítica -, abstrações, sendo digamos, cerceadas pelo cotidiano, sobraram algumas fagulhas, brasas acesas daquele homem natural, selvagem, que mesmo manietado na estrutura, ainda se movia, emergia, vez ou outra.
Dentre estes estão a capacidade de indignar-se, apego ao debate, – cada vez diminuindo -, e principalmente, a curiosidade. Esta, embora o corpo se curve inapelavelmente aos problemas advindos da idade cronológica, insiste, resiste, persiste em ser , graças a Deus, ativa. Sendo assim, posso continuar entoando a belíssima canção do genial Belchior:
“Não você não me impediu de ser feliz/ nunca jamais bateu a porta em meu nariz/ninguém é gente/nordeste não é uma ficção/nordeste nunca houve/não eu não sou do lugar/dos esquecidos/não sou da nação/ dos condenados/não sou do sertão/dos ofendidos/você sabe bem.”
CONHEÇO MEU LUGAR…CONHEÇO MEU LUGAR…CONHEÇO MEU LUGAR.
João Carlos da Silva Costa Leite, nascido em Matinha, bancário aposentado, cursou Filosofia na UFMA. É membro do FDBM -, Fórum em Defesa da Baixada Maranhense e da AMCAL – Academia Matinhense de Ciências, Artes e Letras, ocupando a cadeira 17, patroneada por Maria José da Silva Costa Leite.