Artigo de João Carlos: Belas Águas

Não é novidade minha paixão pelas músicas do confrade, amigo desde tempos pueris, vizinho, companheiro de brincadeiras, pescarias e profissão; cantor, compositor, artista plástico, Kléber Brito, a quem eu, em que pese o passar dos anos, insisto chamando de Kebinha, seu apelido de criança. Sempre digo que suas canções, todas elas, são autênticos faróis, e sendo analisadas sob ângulos/matizes, servem para reportar, contar, extrair, resgatar, no âmbito sociológico, cultural e artístico grande parte da nossa infância.

Vista área de Matinha

Parece que, igualmente Caetano Veloso exaltou na encantadora “Sampa”, o cruzamento da rua Ipiranga e a avenida São João, em São Paulo; aquele quadrado mágico da esquina entre a rua Cel. Antônio Augusto Alves da Silva e a rua Dr Afonso Matos, em Matinha, exerce profundo poder inspirativo, dando a Kebinha uma onda de criação tão incontrolável quanto bela.

As reminiscências emanam em borbotões de versos e estrofes carregadas de saudade e poesia, e a cada obra nova, aparecem engendramentos de arte intensos, que só ratificam a sua genialidade. Eu mesmo ao escutá-las, faço com a certeza, de que o choro fluirá. A última pérola desse artista admirável chama-se “BELAS ÁGUAS”, e tal qual as outras, emociona demais. Tentarei neste texto uma avaliação, reflexão/hermenêutica, dessa composição. Faço sabedor que sob a ótica filosófica, essa análise nem deveria existir, pois a norma exige afastamento completo do objeto, a quem vai estudá-lo, para que seu juízo possua a necessária isenção; e quando se trata de Kebinha, meu sentido de equidade desaparece, sou seu fã de carteirinha. Parcial, na definição bem conceitual do termo.

A começar pelo título, Belas Águas, esta poesia musicada traz informações da Matinha de antigamente, que não obstante o passar do tempo, teima em permanecer intacta, nas nossas memórias. Belas Águas, é um povoado distante da sede uns cinco quilômetros, que sempre teve muita importância na história dos matinhenses. De lá são duas das maiores lideranças políticas da cidade, o ex prefeito, Raimundo Silva Costa, cognominado Pixuta, e o doutor José Conceição Amaral.

Neste local situava-se o engenho de cana de açúcar de Costinha, irmão de Pixuta, último remanescente dos três que no passado, a terra das mangas, possuía, produzindo garapa, açúcar mascavo, e mel, mel de cana inigualável. Além da famosa cachaça que levava o nome da povoação. Quando era a época de moagem, um número expressivo de moradores do município saía, quase em procissão, e a todo momento, trilhando o caminho, sob sol ou chuva, para adquirir aquilo que o engenho de açúcar fabricava, e um dos motivos da canção.

“Sobre a estrada funda/ cai chuva do céu/ lá na Belas Águas/ tão fazendo mel”. Primeira estrofe. Lembranças ecoam…Praticamente todo o trajeto para o arraial, fazia-se numa estrada funda, desde a casa de seu Ozias, até chegar efetivamente no engenho. Essa “estrada funda”, eram barreiras, de um lado e outro, chegando em alguns locais a ter acima de dois metros. Fazíamos o percurso de duas formas: Em não havendo chuvas, ou tendo pouca lama, por dentro da estrada. Quando o inverno apertava, caminhávamos sobre as barreiras, em vias alternativas, arriscando-se a todo momento, cortar ou furar os pés no capim, espinho de tucum, tocos.

Pegar um chuvisco na estrada funda, era sinônimo de intensa alegria, para nós garotos, pois proporcionava a possibilidade de podermos escorregar nos regos já existentes, que em função da água jorrando, tornavam-se em nossa lúdica imaginação, tobogãs.

Tantas e tantas vezes, pedíamos, ou mesmo em atos de desobediência, enquanto os adultos seguiam pelas trilhas em cima das barreiras, para irmos pelas fendas escorregadias da estrada funda, jogando e recebendo pedradas de bolas de barro, ou brincando com os seixos (pedra de trovão), que estavam no caminho. Mais à frente via-se o resultado: roupas enlameadas, repreensões, ralhamentos, algumas ocasiões até pitangadas, e sempre, alegria estampada nos rostos. “O inverno é grande/ Cuidado meninos/ Que a água comprida/ Encobriu Faustino.” A segunda estrofe. Importantes informes…

O inverno está intenso, cuidado, não vão se afogar. Preocupação recorrente, afinal, água não tem galho, dizem os mais velhos. “Água comprida”, como era chamada aquela parte do igarapé açu, atravessava de um lado ao outro a estrada, e de acordo com o maior ou menor número de chuvas, espalhava-se tanto na horizontal, quanto na vertical, daí creio, o nome. Interessante o modo de aferir a fundura desse rio da “água comprida”, nada de medições inócuas, ou outros métodos perigosos. “cuidado meninos/ a água comprida, já encobriu Faustino”.

E quem é esse personagem, essa referência de profundidade que qualquer matinhense, independentemente de idade, sexo, cor, ou condição social, já entendia aprioristicamente? Resposta: Antonio Faustino dos Santos, filho de seu Teodomiro e dona Diolinda.  Desde bem jovem quis ser motorista, foi também goleiro, vereador. Hoje possui um sítio no Jacarequara. Mesmo tendo inúmeros atributos, uma coisa sobressaia-se nesse homem, a quem chamávamos de “Nhô Fosto”: sua altura. Faustino tem mais de dois metros de altura. Causava admiração a todos, quando ele descendo do carro de Juca Amaral, ou mesmo andando na rua, passava por nós.

Certa feita, mamãe me falava do quanto Deus é grande, e eu, devido a tenra idade, ainda sem entender ao que se referia, perguntei: – Mamãe, Deus é muito grande? E ela: – Sim, é enorme, grande demais. Eu inocentemente: – é maior que Faustino? Era, portanto, natural a qualquer matinhense, ao ouvir a frase “já encobriu Faustino”, e alguns ainda faziam o adendo, “de braço pra cima”, entender que o inverno não tava pra brincadeiras.

“Gira maracujazinho/ Flor de geniparaneira/ Olha o redemoinho/ Tá por cima da barreira”. A terceira estrofe. Um giro de recordações…Quando íamos pescar, ou mesmo tomar banho na água comprida, um espetáculo nos fascinava enormemente. Devido as enchentes, quanto mais águas iam se acumulando no meio da estrada, havia a formação de redemoinhos. A enxurrada arrastava das profundezas do igarapé açu, maracujazinhos (maracujá do mato), bem como flores das geniparaneiras, que ficavam nas margens.

O encontro desses objetos com o torvelinho formado pela enchente, estabelecia um espetáculo ao mesmo tempo belo e perigoso, cheio de adrenalina. Sabíamos do perigo presente, mas ao mesmo não conseguíamos nos desvencilhar do poder visual/emocional, sublime, que ele exercia sobre nós. Ficávamos contraditoriamente fascinados, inebriados, “por cima da barreira”, os pés e os olhos molhados. “Na volta a gente banha mais/ Se a vida é aventura/ A infância é moleca/ Litro preso na cintura/ Galho de espantar membeca” Quarta estrofe. Na volta…

Já foi dito que o tempo é relativo. Podemos passar horas satisfeitos, e pensar que são poucos minutos, como também alguns minutos de dor, podem parecer horas. Quando estávamos banhando nas tépidas termas da “água comprida”, a vida parava, perdíamos completamente a noção de espaço / tempo. Era preciso uma chamada de alguém mais velho e responsável: “na volta a gente banha mais”, dizia carinhosamente Tchem ou papai, pra nós. Afinal a aventura ainda não acabara, nosso objetivo principal, chegar em Belas Águas, comprar mel, beber garapa, estava por se concretizar.

Subir na barreira, retomar a caminhada, era muito difícil. Mas a realidade se impunha. E lá íamos nós, rumo ao engenho de Costinha, na cintura, amarrado por uma embira ou cipó, o litro pra trazer o mel de cana, e no cós da bermuda toda molhada, um galho de murta, pronto pra espantar as danadas das membecas, que acorriam em nuvens sobre nós, a fim de chupar nosso sangue. Membeca ou mambeca, é um tipo de inseto hematófago, que vive atazanando, picando a pele, de quem andava por aquelas bandas. Se não for “espantada”, sua picada causa inchaço e dor…

“Daqui já se avista/ Fumaça no céu/ Lá na Belas Águas/ Tão fazendo mel…/ Fazendo mel…” Última estrofe. A apoteose….Neste momento do texto, as lágrimas já rolam soltas. Não tem como não se emocionar com a lembrança daquela fumaça branquinha, subindo suavemente para céu, num contraste límpido, perfeito. A sensação prazerosa do mel, da garapa, da cana in natura, descas do engenho.

Ali nos esbaldávamos. A apoteose da viagem estampava-se nos nossos rostos carregados de felicidade. Era o nirvana, o paraíso terrestre, o auge autêntico do bem-estar. Obrigado Kebinha, por proporcionar através da tua arte, a possibilidade de poder mergulhar no passado, da infância saudosa que não nos sai do pensamento. Por resgatar frases/palavras já esquecidas do glossário dos tempos atuais.

Vocábulos como maracujazinho, geniparaneira, galho de espantar membeca, infância moleca, mel de cana…. etc. Revivem aquilo que nos faz ainda sobreviver. Amores de eras priscas. Saudades guardadas na alma das imorredouras crianças que fomos e somos.

Meu contemporâneo confrade, talvez não tenha noção do quanto suas músicas/poemas nos fazem bem. É muita nostalgia envolvida, amor descarregado, choro desandado. Lembranças revigoradas. No teu canto, caro amigo, somos imensamente felizes.

João Carlos da Silva Costa Leite é cronista e escritor, natural de Matinha – MA. Bancário aposentado, casado, presbítero em disponibilidade da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPIB). Membro do Fórum em Defesa da Baixada Maranhense (FDBM). Membro fundador da Academia Matinhense de Ciências, Artes e Letras (AMCAL), ocupando a cadeira de número 17, cuja patronesse é sua mãe, Maria Jose da Silva Costa Leite. Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Uma resposta para “Artigo de João Carlos: Belas Águas”

  1. É essa matinha que está no meu consciente está de hoje eu não sei nada pois sair de la a quarenta anos e só voltei lá poucas vezes e muito rápido mais tenho saldade do meu tempo de Colégio
    Enfim das coisas que foi falado ai

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