Retorno a infância: artigo de João Carlos Costa Leite faz uma viagem nostálgica a sua infância em Matinha

João Carlos da Silva Costa Leite – Relembrar  o  passado  de uns tempos pra cá  tornou-se  frequente  em minha vida. Tenho escrito  sobre o tema, e pelo andar da carruagem, parece que continuarei nesse diapasão, pois as rememorações insistem em  ocorrer, jorrando, vertendo caudalosamente, igual   rio nas enchentes, como  sangria  desatada. 

Texto é do escritor João Carlos Costa Leite

Ao ouvir duas músicas cantadas por Luís Carlos Brito – pra mim  será sempre Enxuto -, “ Juntando os cacos” e “ Andorinhas”, a primeira  composta por  ele e a outra do seu irmão Kleber –  Kebinha, sempre pra mim -, veio-me à mente, fragmentos  da  infância,  tempos antigos, quando  morávamos  na terra da manga,  naquele quadrilátero perfeito formado pelas casas de vovó Lola; Seu Miguel Brito, pai dos dois;  a farmácia  Santa Terezinha, de tio Ademar; e o velho casarão de Juca Amaral.  

 A figura geométrica   na esquina da rua Dr. Afonso Matos, com a  Cel. Antonio Augusto,  caracterizava   nosso lar. Entrávamos, saíamos,  brincávamos, brigávamos, sorriamos, chorávamos, nas quatro residências, como se nossa casa fosse. Nos sentíamos   os donos do pedaço. Percorríamos  os cômodos, – com algumas limitações-, e quintais dos  quatro domicílios, com a naturalidade, inocência e destreza,  que as crianças possuem. 

O gosto  do refresco de maracujá, ou coco que seu Miguel vendia, está gravado no fundo da  minha alma. O cheiro das bolachinhas assando, da bosta de boi molhada ou sendo queimada no quintal do casarão, do óleo exalando do caminhão a manivela,  dos ferros de solda de Nonato de Juca consertando rádio,  de papai fazendo lamparinas, entravam em nossas narinas,  provocando   sensações indescritíveis. Os sabores das mangas rosas,  peruanas, atas, permeiam  meus  sonhos. 

 E devaneio, anelo por um retorno àquela época. As  brincadeiras   típicas  eram praticadas constantemente,   nossa vida consistia  num  eterno divertir -se.  Éramos felizes,  e sabíamos muito bem  disto. 

 Brincar de boi de mamorana,  São Caetano, carrinho de lata de sardinha, com pneu de sandália  japonesa velha,  pião de coco babaçu, bolinha de vidro, china, castanha; caçar de baladeira, jogo de botão, ouvir histórias de assombração, etc…eram atividades praticadas cotidianamente entre nós, com ajuda de muitos vizinhos, que de visitantes não tinham nada, pois passavam o dia quase todo  conosco.  

Ultrapassando o espaço do cruzamento entre as duas  ruas  já citadas, que denomino  “nossa casa”, adentrávamos a outro espaço  dessa  fictícia – pero não mucho -, cidade. Setores   onde frequentávamos   com assiduidade,   contudo menos  intimidade. 

Tomando por referência os pontos cardeais,  ao leste  a   casa de João Lima e o colégio grande, o Ginásio Bandeirante;   a  oeste, a casa de coronel, o cemitério municipal; ao sul a casa de João Berredo, a entrada para o Aquiri;  e ao norte, a casa de seu Ozias. Estavam ali os limites. 

Traçando uma reta imaginária  entre os pontos,  encontraremos o “centro” da cidade. Nesse espaço  brincávamos, estudávamos, brigávamos,  banhávamos na chuva, nas baixas, pescávamos de anzol,  secávamos  poças; juntávamos, quebrávamos tucum, no intuito de  vender as amêndoas e pegar as larvas – bicho – para pescar.   

 Resultado:  apanhávamos    severas surras, de marcar o couro, mas que   não   desvaneciam   a vontade de continuar, pois  esse ambiente, era o que como crianças,  entendíamos   liberdade. 

Baixa de Grisosto e  de Lucília, Campo de Aviação, Barragem do Cajueiro do Mercado, Hospital dr Afonso Matos, a Igreja Católica,  a Igreja Presbiteriana Independente, a rua da Madeira,  Escola Professor Joaquim Inácio Serra, Casa do Forno de seu Osias, de seu Teodomiro, dentre outros, incluíam-se   nesse  território. 

 Ali chegávamos ao ápice, ao cume  da felicidade.  Estava   um  pouco distante do quadrilátero onde reinávamos absolutos,- afinal lá era nossa casa –  mas ainda nos percebíamos donos da área, e transitávamos livres, leves,  soltos  por ela.  

Em  êxtase lúdico,    vivíamos um  verdadeiro  “Estado de Poesia”, parafraseando o poeta e cantor paraibano  Chico Cesar.  Comíamos manga rosa, de massa, goiaba, ginja, cauaçu, maracujazinho do mato. Buriti e jenipapo na rua da madeira; tomávamos banho  no poço velho, e nas “ biqueiras “ das casas aproveitando as chuvas;  caçávamos pirulico,  corríamos para pegar o vento dos aviões no campo de pouso;  saboreávamos  garapa de seu Nilo Mendonça. Jogávamos bola e  – escondidos dos pais –, bilhar na casa de João Lima; brigávamos – batendo e apanhando -, com os  meninos lá de baixo.  

Para além das balizas    citadas, seguindo o raciocínio posto, ficavam os  “bairros”.  As roças, igarapés, povoados ou  locais onde fechávamos os derradeiros  ritos dos divertimentos,  e iniciávamos a vida  mais responsável. 

 Fronteiras praticamente desconhecidas ou com mínima  atuação: Itans, Ilha Verde, Bom Jesus, Santa Maria, Enseada da Mata, Ponta Grossa, São José, Pirai, Santa Rita, Caminho do Fio,  Santa Vitoria, Campinas, Bamburral, Olinda dos Castros. Formavam o cinturão a  circular  o  “ centro”.  

Embora a ida a estes locais, em função da distância,  do trajeto  e seus objetivos, digamos, adultos, pois estavam dentro do  espectro do ganha pão, da sobrevivência,   já não trouxessem   mais oportunidades    para as peraltices  cotidianas, ainda podíamos  juntar,  com alguma imaginação, atividades   que   alentassem   o espirito da aventura,  do entretenimento. 

  Destarte, deslocar-se  para roça  no Sulino, casava perfeitamente com as mangas, gapeuas, ananases, esporões  de galo, araticuns, bacurizinhos,  coroatás, macaúbas, murtas, amejubas, marajás, camapus, ou goiabas araçás juntadas, apanhadas por lá. 

 Ir para o Mangal,  Belas Águas, Bom Jesus, Galego, Espanha, Santo Antonio, com Tchem, para visitar pessoas doentes, ou com papai, consertar fornos e alambiques, proporcionavam comer banana, bacuri, tomar garapa, escorregar nas poças de lama,  banhar na água comprida,  igarapé de gongo, no inverno,  se sujar de areia no verão. 

Além desses marcos, surgia o mundo. 

 São João Batista, São Vicente Ferrer, Viana e logicamente São Luís, pra  onde íamos  esporadicamente, com as peripécias decorrentes do  percurso, –  o pau de arara, a travessia no rio de Cachoeira, entrar no asfalto em Vitória do Mearim -, chegar na capital,  aventuras desconhecidas e misteriosas. 

A fase adulta nos propiciou  caminhos diversos, fomos obrigados a  abandonar  o Paraiso,  desembarcando     num  outro universo,  além das divisas que vivíamos. Duro golpe sofremos, não havia divertimento, só  a obrigação em ser alguém. Coisa de gente grande.  

  Frequentadores e moradores da nossa “casa”, do nosso “centro”, do nosso “bairro”, estão hoje  envelhecidos. O amor ao torrão natal, um  sentimento que salta  o coração,   possibilitou   o aparecimento de veias     artísticas até então desconhecidas  ou não aproveitadas. Alguns, depois da aposentadoria.  

E brilham, extravasam  seus talentos para deleite de todos. Emociona encontrá-los, ouvi-los, lê-los, desfrutar das suas presenças.  

Certamente, toda essa capacidade  foi gestada, nasceu, foi cultivada,   maturada, por causa daquele  espaço geográfico inesquecível, amado, que nos faz chorar  quando  lembramos. E   que   insiste, resiste,  permanece aparecendo, reaparecendo, aquecendo,   nossas mentes, almas, corações.

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