Ao completar sessenta anos passamos, acredito em função do ócio que se apresenta no cotidiano de modo mais amiúde, a relembrar, analisar, pesar e interpretar atos, fatos, acontecidos ao longo da existência. Parafraseando a música de Chico Buarque de Holanda, “ Olhos nos olhos”, na estrofe “ me pego cantando sem mais nem porque”, troco o “cantando” por “ pensando”, e me revolvo num turbilhão de reflexões.
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Cada experiencia hodierna, reporta quase que automaticamente, algum episódio, recorte do passado, que tenha conexão com o ocorrido. Nos últimos dias, embates havidos, alguns com pessoas por quem admiro, respeito, trouxeram reminiscências de uma característica marcante, um traço de personalidade, que me acompanha desde a infância : o sentimento questionador, querelante, revolucionário, inquiridor, dado a polêmicas. Uma característica inata. O sentimento de olhar a coisa por outro ângulo, propondo, procurando, exigindo respostas além do que foi perguntado, num comportamento considerado rebelde, malcriado, ou como chamam na Baixada, “saliente “. Tais atitudes causaram-me grandes dissabores.
Contraditoriamente, angariei amigos, pessoas que mesmo discordando da forma como falava, pensava, agia, denotaram em palavras e ações – guardo essas manifestações com apreço -, gestos de carinho, afeto, sólida amizade, preservadas perenemente. Se a memória não falha, meu primeiro ato para chocar deu-se na saída do Jardim de Infância Topo Gigio, quando encasquetei de retornar pra casa só de cueca, colocando a farda dentro da lancheira. Evidentemente, levei uma reprimenda, creio que da professora Maria Berredo. Mamãe e Tchem foram comunicadas da ” saliência “.
Ultrapassada a fase do primário, provavelmente lá pela antiga 7ª serie, deixei uma professora de História sem respostas, ao perguntar como só com um grito de “ Independência ou Morte “, as margens do riacho Ipiranga, Dom Pedro I, conseguiu libertar o Brasil do jugo português, se tivemos Tiradentes morto e vários movimentos armados sendo sufocados antes ? De outra feita, instei uma educadora a dá significado ao termo “ capitular”, do jeito que havia lido num dicionário, no sentido de entregar-se, render-se. Ela coitada, passou muitos dias sendo cobrada, sem conseguir achar o verbete que me agradaria.
Este histórico ávido por controvérsias, sempre esteve presente em mim. Talvez se origine no natural sentimento dos jovens serem contrários a tudo, ou ainda pela influência de informações em revistas, livros, programas de rádio, televisão, que sempre gostei de acompanhar. Há também a possibilidade de ter sido picado pelo mosquito da filosofia desde tenra idade, que fez aflorar um espirito de rebeldia, beligerância, a me acometer. O certo é que adorava – ou adoro -, uma disputa. No tempo do Ginásio Bandeirante, quando fazíamos algum trabalho em equipe e me posicionava com questionamentos, os colegas falavam: “ lá vem o do contra”
Com a passar do tempo, aquilo que já era natural, foi se fortalecendo através do empirismo, agregando conceitos e valores que ideologicamente se uniram a uma concepção humanista e de fundamento esquerdista. Obviamente, que essa visão travou intenso combate interno, mental, com a forma até então apreendida, pelo ensino desenvolvido no seio familiar e religioso. Cursar Filosofia, não obstante a postura de evitar debate nas salas de aula e eventos paralelos, alargou, aprofundou temáticas até então vistas de modo superficial, bem como o aprendizado de métodos, categorias, conceitos só possíveis num curso com a carga de professores do naipe dos que temos na UFMA.
Em suma, todo aquele espirito querelante, que possuía, passara incólume, preservado durante cinquenta anos, travando lides na igreja, partido, sindicados, banco, estremeceu relacionamentos, mas ao mesmo tempo fortaleceu sólidas e perenes amizades. Fui agraciado por Deus em viver num tempo histórico, eivado de movimentos sociais, políticos, que favoreceram, fizeram florescer e cevaram esta índole ao digladio. Uma porcentagem de pendor hereditário, coube ainda a mamãe. Maria de Lola possuía o dom de elaborar questionamentos e tiradas que deixavam os interlocutores aperreados, em “ camisa de onze varas”, como se diz na Baixada. São famosas suas perguntas a pastores recém-chegados a Matinha sobre temas difíceis da Bíblia Sagrada.
Importante esclarecer, que esses arroubos sempre foram no campo da retórica, em momento algum descambaram para a violência, sou por natureza avesso a esta. De modo que minhas querelas ficavam circunscritas ao aspecto do debate – normalmente acalorado – intelectual, não havendo agressões físicas. Meus pais me ensinaram desde cedo que violência não leva a nada. A propósito, lá em casa nós nunca aprendemos a manusear armas, era terminantemente proibido, fossem de fogo ou brancas. Meus amigos mais chegados, a quem considero irmãos, mesmo não tendo o mesmo sangue, são bem poucos, talvez não cheguem a dez, todos discutem, debatem, querelam, muitas vezes, veementemente comigo.
Ou seja, essa particularidade não é voltada aos “ não amigos” – creio não ter inimigos -, está amalgamada, é parte de mim, convive no corpo, transita nos cinco sentidos, extravasa a mente, se apresenta na alma, no espirito. Sem o fundamento da refrega, este ente não existiria, seria mera ficção da realidade em que convivo, um zumbi, sem vontade ou padrão definido, expectativa de vida, futuro, porvir. Optar por um viver dialético, proporcionou o envolvimento, bem antes do entendimento filosófico dessa palavra, em dimensões as mais diversas possíveis no tecido social, na cidadania, possibilitando batalhas, vitórias, das quais tenho orgulho.
Muitas foram as ações que pratiquei, ajudei, assessorei, pessoas a mover, num efeito didático, pedagógico, visando o ressarcimento até em âmbito financeiro por erros cometidos na obtenção de produtos/mercadorias, atos impróprios adotados em instituições, sejam elas públicas ou privadas. Sopesando, creio ter conseguido, no “frigir dos ovos”, ao fim e ao cabo, mais bônus que ônus.
Concluo então, ter valido a pena meu histórico de polêmicas. Hoje, não exerço essa atividade com a gana de antes. As redes sociais capilarizaram instancias de violência, linchamento virtuais, muito além da mera discussão de ideias, e isso traz medo, paralisa e faz refletir, sobre eventuais, desastrosos, desdobramentos.
João Carlos da Silva Costa Leite, nascido em Matinha, bancário aposentado , estudante do curso de Filosofia da UFMA. Membro fundador da AMCAL , Academia Matinhense de Ciências , Artes e Letras onde ocupa a cadeira 17.