Artigo: Viagem onomástica e semiótica: um alerta importante visando a preservação de nosso patrimônio

Por João Carlos Costa Leite – Sempre fui apaixonado por nomes, prenomes, sobrenomes, epítetos, apelidos, alcunhas. Símbolos onomásticos povoaram minha existência antes até de conhecer suas formulações. Origens, formas de expressões, sotaques, significados, simbologias, aguçaram meus instintos e curiosidade logo que comecei a raciocinar, e ainda hoje, já dobrando o “cabo da boa esperança”, prestes a me tornar sexagenário, fascinam, encantam.

João Carlos Leite

Acometido de onicofagia, acredito que em função da ansiedade, conquistei a fama de inquiridor, questionador, perguntador. Estava sempre aspirando saber além daquilo que se apresentava na superfície, almejando ir mais fundo aos significados, numa atitude – não o sabia -, inteiramente filosófica. Denominações de distritos, apelidos, prenomes estranhos, histórias de assombração, folguedos populares, tudo motivava um conhecimento minucioso.

Pleiteava os porquês. Fazendo com que os ouvidos e principalmente a paciência de papai, mamãe, Tchem, Lauro, ou quaisquer outras pessoas que estivessem ao meu redor, sofressem. Era muito divertido escutar frases ininteligíveis, das pessoas que vinham dos mais diversos lugares, consultar com Tchem. Expressavam-se num idioma próprio e obscuro, relatando suas dores. Ela, já conhecedora do linguajar, traduzia simultaneamente, e passava o remédio.

Aguçava a minha curiosidade, os nomes pra lá de diferentes dos amigos e amigas, que conviviam na casa de vovó Lola : Mizael, Romana, Zeruia, Prisco, Cirilo, ,Noemia, Hemetério ,Artemisia, Marcelino, Faraildes ,Melchzidech, Romualdo ,Adofina, Sisnandes, Eufemio, Crescencio, Gedeão, Crispim, Vicência, Belisário, Pulquério, Honório ,Lucilia, Romário, Militão, Casimiro, Carmosina, Gregório, Firmino, Inocêncio, Ozias, Norberta (o), totalmente contrários aos Joãos, Josés, Marias, Rosas, Luizes, Joanas, Raimundas(os), Carlos ,Anas, Augustos, Isabels, Teresas, etc…que estavam no meu dia a dia.

Já mais taludinho, afeito a concepções encontradas em livros, percebi que nomes hoje em vasta evidencia como Thiago, Felipe, Rafael, Guilherme, Ricardo, Gustavo, Leandro, Gabriel, eram pouco conhecidos na terra das mangas, e os que havia, restringiam-se a pessoas bem idosas. Escutei diversas vezes a frase politicamente incorreta: “ esses são nomes de velho”.

Rememoro também, em que pese ter sido criado na visão maniqueísta da política partidária matinhense, onde o adversário só possuía defeitos, da alegria e melhora de conceituação, ao saber que dr Araújo, colocara nos seus filhos nomes de filósofos gregos. Passei a refletir: um homem com esse pensamento, não pode ser tão ruim como pintam. Passaram-se os anos, e esse espírito controverso, polêmico, irrequieto, perscrutador, permaneceu, com predileção às temáticas nebulosas, intrigantes, inquietantes, misteriosas, da região e cidade que nasci.
Os exemplos são vastos e heterogêneos. Em alguns obtive respostas; umas convincentes, outras mais ou menos. Porém houve casos que até hoje, estas nunca apareceram. Permanecem no mais abissal mistério.

Por que nossa terra se chama Matinha? Fácil essa, não? Por que existem duas localidades com nomes de animais, e ambos sendo primeiro e segundo: Preguiças e Cutias? O que levou nossos ancestrais a chamarem o arraial na beira do campo de Ilha Verde? E Itans? o confrade Ezequias nos ensinou. Como iniciou-se a história do berrador do caminho grande? Do bode no caminho do Mangal? Quem realmente viu um fit? Por que dizem ser o Sulino mal-assombrado? E currupiras, são reais? Os povoados Galego, Espanha, e a ponta de mato chamada Galiza, hoje um bairro da cidade, tiveram alguma relação na elaboração de seus nomes, com espanhóis que por aqui chegaram?

Os apelidos são um capítulo à parte. O que motivou ao baixadeiro tamanha astucia na sua confecção? Quais são seus significados? Os exotismos se sucedem num misto de bom humor, engenhosidade espirituosa e deboche. É impossível ficar sério ao ter acesso a estes. Mencionarei uns poucos, só para demarcar terreno, pois tenho outro texto denominado Nomes exóticos de Matinha, onde elenco vasto repertório de alcunhas: Capijuba, Palá, Xuxeta, Pixuta, Puchuca, Chapô, Cherré, Bugarim, Carrapicho, Skol, Genial, Ablopes. Em concomitância, os povoados também são excêntricos e hilários. Que imaginação levaria alguém a designar locais com os nomes de Chulanga, Tocoira, Pachorra, Bobento, Charalamba. Piraí, Broqueval?

Poderia também citar a criatividade na elaboração de frases de efeito, palavras que só ocorrem, circulam, na nossa região ou cidades, formando um dialeto impossível de ser decifrado por pessoas de outras localidades: Oraça, apolodido, polino, xiba, beçar, fulejo, birola, creca, cristé, roscrofe. Nesse aspecto, nossa cidade chegou ao ápice, cimo, cume, com uma pessoa que é patrona de uma cadeira na AMCAL – Academia Matinhense de Ciências, Artes e Letras – Raimundo Benito dos Santos, do qual nos orgulhamos muito em ter convivido. Bé ou “arroiz de pranta”, como nossa geração o chamava, era um artista nato. Possuía uma memória prodigiosa, era capaz de guardar e reproduzir discursos ou pregações do presbítero e advogado José Conceição Amaral, ipsis literes, mesmo sendo analfabeto.

Benito conseguiu a proeza, façanha, de influenciar a toda uma população, um bairro inteiro, num fenômeno coletivo impressionante, a se pronunciar com o mesmo sotaque e trejeitos dele. Talvez de modo inconsciente, por curiosidade, ironia, admiração, num evento único que só a psicologia poderia explicar, passaram utilizar a sua voz, marcadamente anasalada e cantada, também algumas palavras por ele inventadas, incluindo-as ao seu cotidiano. Citarei duas palavras que nosso gênio concebeu, compilou e incorporou ao vocabulário, deixando esse legado aos contemporâneos e sucedâneos, numa paráfrase a Carlos Drummond de Andrade, no poema canção amiga, ”aprendi outras palavras e tornei outras mais belas”: enganar – virou “engan”, categoria,” caté “.

Não tem como não admirar Benito. Ele é o símbolo de um povo, que sendo pobre, permanece alegre, com bom humor, insistindo sobreviver, mesmo diante das adversidades. Traduz um simbolismo que excede os contrastes sociais e envereda pelo caminho dos heróis que ultrapassam com suas as histórias, o verídico, descambando ao ficcional, ao assombroso, sobrenatural. As peripécias de “ arroiz de pranta”, sua forma singular de tratar as pessoas, seu jeitinho peculiar, sempre apto a se dar bem, sem com isso cometer crimes, ficarão para sempre em nossas memórias. Não tem como não se emocionar ao relembrar dele.

Guardando as devidas ´proporções, Benito é João Grilo, personagem de Ariano Suassuna, na famosa obra O Auto da Compadecida, da cidade de Matinha. Merece homenagem, merece um livro. Deus privilegiou com riqueza imensas a Baixada e todas as suas cidades em inúmeros aspectos, esse lado semiótico e onomástico é só mais um. Deveria ser uma inspiração a todos que amamos essas singularidades, bem como servir de estímulo e cuidado na perpetuação destes.

Sou tomado as vezes por sentimentos de angústia e impotência, quando constato o quão pouco temos feito para que esse conhecimento (episteme), esse patrimônio, sejam preservados. Constatando o latente perigo das gerações que nos sucederão perderem o privilégio de conhecer e continuar admirando essa incalculável beleza cultural.

2 respostas para “Artigo: Viagem onomástica e semiótica: um alerta importante visando a preservação de nosso patrimônio”

  1. Contos e causos da nossa vivência interiorana. Um tempo idílico, de magia e de encantos. Temos as nossas “Macondo” e os nossos “Gabriel Garcia Marques”.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *