Artigo: Encosta no Zé Paga, ou na ida ou na vinda

Vindo da Santa Maria/ encostei lá no Zé Paga/ jamais se apaga/ a minha recordação/ amarro o burro na argola/sento no mocho/encostado no balcão.(duas vezes) Santa Maria/ou pra Olinda/ tem que encostar/ no Zé Paga/ ou na ida ou na vinda. (refrão). Mais fina do que abade/ a saudade vai trazendo/muita lembrança/até parece que tô vendo/a faca de picar fumo/balança velha/com o prato zinabrado/cashimi na prateleira/e o saci na geladeira/pra espantar o mau olhado. (refrão) Santa Maria…Bola de açúcar mascavo/pego a dose de costume/alguém pede querosene/e meia caixa de “frosque”/cinco centavos/de pomada sem perfume. (refrão) Santa Maria…Fura logo esse paneiro/experimenta e me diz/se a farinha for da boa/compro logo meio alqueire/pra mandar pra São Luís. (refrão) Santa Maria… Peso de papel de embrulho/é uma pedra de trovão/amor que só faz barulho/é peso pro coração. (refrão) Santa Maria…

Esta é a mais nova canção do artista matinhense, membro da AMCAL – Academia Matinhense de Ciências, Artes e Letras, e meu amigo de infância Kleber Brito. A quem chamo carinhosamente, Kebinha.  Como não poderia deixar de ser, uma belíssima peça, uma obra de arte, capaz de em suas estrofes, nos transportar ao passado, que nem ele, nem qualquer um dos nossos contemporâneos esquece.São lembranças que teimam permanecer incólumes em nossa memória apesar do tempo e da distância. Neste texto tentarei analisar, fazer uma crítica a mais esta ode à nossa terra, suas coisas, suas gentes, que nosso poeta sempre traz.

Talvez a emoção, o carinho, admiração ao menestrel matinhense, tolham, ofusquem, minimizem, descaracterizem minhas ideias, tornando-me inapto a uma melhor, ou mais isenta análise, mesmo assim, tentarei. Primeiramente, vamos ver quem foi Zé Paga, esse personagem que o nosso bardo comedor de manga, magistralmente resgata. Era o dono de um “bode”, como chamávamos os pequenos comércios da beira de estrada. Essa quitanda, ficava bem na bifurcação dos povoados de Belas Águas, Olinda (na época pertencente a Matinha), Santa Vitória, entrada do Bom Jesus e Santa Maria dos Furtado. Portanto qualquer cidadão que fosse para uma dessas povoações, imperiosamente teria que passar e parar no comércio de Zé Paga.

Nosso vate possuía laços familiares na Santa Maria, Bom Jesus e  Olinda Nova, principalmente em Santa Maria, ali moraram seu, avô Luís Furtado, inúmeros parentes, além de  seu tio Eugenio Furtado, comerciante com fortíssima condição financeira, que transformara a pequena povoação onde residia e trabalhava, numa referência em nível de região. Seu “Ogenho”, como chamavam os moradores. Dotado de rara capacidade em comerciar, comprava e vendia de tudo, desde amêndoas de  coco babaçu, e  de  tucum, apetrechos para caça, pesca, roupas, milho, arroz para plantar, trigo, arame farpado,  patachos, enxadas, foices, material de construção, eletrodomésticos, etc. Sua loja, que era imensa, especialmente em se tratando de uma pequena localidade, cercada de campos inundáveis por quase todos os lados, mantinha uma movimentação intensa durante o ano todo, no verão por carros, e em maior quantidade burragens; no inverno por canoas, advindas de arraiais pertencentes a Matinha, São João Batista, São Vicente Ferrer e Viana.

A música começa numa recordação cara a muitos que hoje possuem mais de 50 anos, a ida e vinda a Santa Maria. O canto “Vindo da Santa Maria/encostei lá no Zé Paga/jamais se apaga a minha recordação/amarro o burro na argola/sento no mocho/encostado no balcão”. Pra Kebinha, era coisa comum, pois como já fora dito, a família da sua mãe, Maria Furtado Brito, “Dona”, a quem nós carinhosamente intitulávamos  “Dondona”, morava lá. Impagável essa reminiscência, montados num burro, com cofos de farinha, coco, tucum ou sacos de sal, de um lado e outro da cangalha, a gente no meio, garotos ainda, conduzidos de forma sacolejante, pelo andar, ou às vezes chouto dos animais.  A argola, era um aro de ferro forjado num fole, com uma espécie de chucho do tamanho de um palmo que o circundava, este era posteriormente cravado em uma coluna de tijolos ou esteio de pau d’arco, na entrada ou pórtico das residências, normalmente onde haviam grandes fluxos de pessoas, de sorte que os viajantes podiam amarrar as cordas dos cavalos ou burros nestas, conseguindo tranquilamente entrar nas casas ou comércios.

Alguns ainda permitiam, em baixo dessas argolas, nas calçadas, a instalação de manjedouras, ou cochos com água ou capim, para maior satisfação dos “semoventes tangidos” e seus proprietários. “Parece que tô vendo”, o mocho meio bamboleante ao suportar o peso de bêbados encostados no balcão de madeira já enegrecida pelo tempo. Mais fina do que abade/ a saudade vai trazendo/muita lembrança/até parece que tô vendo/a faca de picar fumo/balança velha/com o prato zinabrado/cashimi na prateleira/e o saci na geladeira/pra espantar o mau olhado. A segunda estrofe é belíssima, muito além da sua sensacional rima. Palavras não mais, ou de pouco uso atualmente, permeiam essa parte do canto, e borbulham, transbordam, extravasam saudosas recordações. Quem ainda conhece a “abade”? Deixou de ser vendida, assim como outras coisas no nosso atribulado dia a dia, e no sistemático, inexorável, porém questionável processo, denominado progresso.

Era bem fina, como frisa nosso poeta, servia para enovelar o fumo de molho picado, o “molheiro”.  Ao ser enrolada, era colada com a língua do fumante. “Até parece que tô vendo”, não só isso, meus olhos estão marejados, na minha memória despontam a faca de picar fumo, ponta fina de tanto amolar e do uso constante; a balança velha, e seu prato já tomado pelo zinabre; a lata de talco cashimi bouquet, famosíssimo pelo seu forte e gostoso odor, exposta na prateleira de madeira velha, geralmente paparaúba, devido sua  composição leve e facilidade em cortar, serrar ou pregar, bem como devido a grande quantidade dessa madeira na  região. Por último, Kebinha magistralmente fecha a estrofe, e as lembranças se tornam uma torrente impiedosa de lágrimas que teimam em cair, embaçando meus olhos e ações.

Quem pode esquecer aquela figura de mais ou menos trinta centímetros, uma perna só, todo preto, chapéu ou gorro na cabeça, cachimbo na boca, colocado em cima da geladeira a gás ou querosene? Sua função precípua e única? Evitar que pessoas de “olho gordo”, invejosas, pudessem interferir na vida financeira e pessoal, do possuidor do negócio. Não sei se resolvia, mas esse personagem era muito visto em quase todos os comércios naquela época. Bola de açúcar mascavo/pego a dose de costume/alguém pede querosene/e meia caixa de “frosque”/cinco centavos/de pomada sem perfume. A terceira parte dessa bela criação, composta com o coração, a alma, por esse artista a quem tenho o privilégio de chamar amigo e companheiro, pois fomos bancários juntos, continua emocionando. Cada vocábulo, cada frase, desemboca no sangradouro da nostalgia, irrompendo numa abissal vontade de voltar no tempo. O açúcar mascavo e a dose de costume, vinham de ali, bem pertinho, do engenho Belas Águas, de Leocádio Silva Costa, o Costinha. A dose de costume era quase uma religião, pra quem gostava da branquinha, a insigne cachaça Belas Águas, saída da indústria de cana   de Costinha. Pra quem não curtia a caninha, a pinga, a “marvada”, como eu, não importava, o engenho de Belas Águas, generosamente nos oferecia garapa e mel fresquinhos.

Lógico que Zé Paga vendia, e vendia bem querosene, afinal naqueles tempos sem energia elétrica, era esse “quorosene”, (como cognominava  a população, sem instrução formal, mas com uma imensa capacidade de inventar, moldar, formatar, igual Drummond, novas palavras), se utilizava para inúmeros fins, por exemplo encher suas lamparinas, de uso noturno, peças estas de flandres fabricadas por Juvêncio Capijuba. Para não perder o freguês, Zé Paga mercadejava tudo no retalho, desde fumo  molheiro, farias, meia caixa de “frosque”, cordas, anzóis, bacuris, pequis do quintal de Crispim, o melhor da região, meio quilo de sal, traíra seca, curimatá  e surubim salpreso, muçum de São Bento, um quarto de cachaça, meio litro de cinzano, meia caixa de “piula contra”, ou cinco centavos de pomada sem perfume.

Fura logo esse paneiro/experimenta e me diz/se a farinha for da boa/compro logo meio alqueire/pra mandar pra São Luís. A quarta parte é quase uma continuação. Como já foi dito acima, Zé Paga, tal qual outros pequenos comerciantes, negociava de tudo, vendendo, comprando, trocando. Mas haviam os mais procurados, a farinha d’água era essa favorita.  Os paneiros de farinha avolumavam-se no paiol do seu comercio, ou próximo da balança decimal, prontos para serem vendidos, a grosso ou a  varejo. Um paneiro ou um alqueire, equivalia a 30 ou 32 quilos de farinha, acondicionados em um cofo especialmente confeccionado para esse fim, forrado com folhas de guarimã, amarrado com cipó de jabuti destripado. O serviço era tão bem feito, que o produto durava dias dentro daquele invólucro, sem perder o sabor. Usava-se normalmente um furador de ferro para poder apreciar “se a farinha era da boa”.

“Compro logo meio alqueire/pra mandar pra São Luís”. Todo pai ou mãe que enviava seu filho pra “cidade, para estudar, necessariamente começava (no dizer de papai), a ter um novo padroeiro, passava a ser devoto de um novo santo. Agora tudo que ele juntava, com seus parcos recursos, e endereçava   a estes, mudava de destinatário, ia genericamente pra “São Luís”.  Perdia-se assim a referência do nome dos filhos ou filhas. Peso de papel de embrulho/é uma pedra de trovão/amor que só faz barulho/é peso pro coração. Derradeira estrofe, a emoção move os versos na apoteose da canção, trazendo ainda elementos hoje distantes do nosso dia a dia. Papel de embrulho, eram folhas duplas de papel, que cortadas ao meio, serviam para como o nome informa, embrulhar produtos a serem vendidos. Como eram folhas soltas, precisavam ser contidas, para não ficarem dispersas ao vento, aí entrava a “pedra de trovão”, aquele pedaço de seixo duríssimo, sem uma origem definida, pesando entre ½ a um quilograma, encontrado às margens das estradas fundas, contiguo a olhos d’agua, colocados sobre elas.

Faz muito barulho esse amor Kebinha, atua direto na alma de quem teve o privilégio de viver aqueles tempos que teimam em subsistir, vívidos na nossa memória. Tua música, poesia, sensibilidade, teu senso de percepção, têm a capacidade de deixar permanentemente em nós, o peso da saudade, mas também carregam, ofertam uma leveza imensa ao coração. Além da certeza de que no passado, morava a felicidade.

João Carlos Leite, membro da Academia Matinhense de Ciências, Artes e Letras

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