Que aprecio as canções de Kleber Brito, – Kebinha -, é tão inédito quanto um matinhense gostar de manga. Que toda vez que ele cria uma canção nova eu choro, também não é segredo. Sou fã incondicional desse amigo, quase irmão, conhecido desde sempre, pois nascemos, moramos, crescemos em casas defronte uma da outra; nossos pais foram amigos, fomos bancários e militamos no Sindicato da categoria, nossas esposas são amigas, comungamos da mesma ideia de mundo, temos utopias ideológicas similares.
Muitas vezes utilizo, – fico só na biqueira-, de suas composições para escrever, e o faço sem muito esforço. Basta distender o que sua genialidade condensa. Como avoco conhecê-lo profundamente, fico a cavaleiro para interpretar, preparar um novo texto, cheio de emoção e pranto. Seu último sucesso chama -se BENITO DE PÉS NO CHÃO, um tributo ao patrono da cadeira número 27 da AMCAL – Academia Matinhense de Ciências, Artes e Letras-, Raimundo Benito Pereira Belfort, ocupada por Natalia de Jesus Sousa Cunha.
Orgulho-me bastante quando da criação, briguei, defendi e consegui , -sem nenhum demérito aos outros , aptos a estarem onde estão -, incluir Benito e Silvino Rodrigues, na plêiade das 40 cadeiras da Confraria. Figura obrigatória nos bate papos da cidade, um ícone para gerações, Benito foi a meu juízo, um dos homens mais inteligentes que convivi. Impossibilitado de aprender a ler e escrever, foi capaz de façanhas que muitos doutores, pós-graduados, pós doutores, não conseguiram.
Obviamente, um artigo não abrangeria com exatidão sua intensa e luminosa trajetória. Por conseguinte, limitar-me-ei a letra da música, na perspectiva de decifrar a síntese desta, simultaneamente, trazendo informes sobre esse ser essencial para a cultura da nossa terra.
BENITO DE PÉS NO CHÃO.
Benito de pés no chão/ Mão direita sobre o coração/Sem camisa sem apego/Dentro de um calção surrado/Buscando conversação. Se alguém menos apressado/parava para ouvir/Chegando mais lá na frente/Refletia sorridente/Algo novo aprendi. Em pé no canto de Ademar/Revejo sua figura/No Juvêncio no Miguel/ No canto da prefeitura. Ensinando a cidade/Sobre posse e felicidade. Essa é pra ti meu chegado/Benito de pés no chão/Tu és o arroz de planta/Que o Dono do roçado/Guardou para a plantação.
Uma letra para ser entendida concomitante a melodia. Kebinha diz que sua voz é horrível, discordo veementemente. Para mim, suas canções são muito mais belas, quando entoadas por ele. Situação análoga a outro torcedor do Fluminense, também tímido e com ideias esquerdistas, chamado Chico Buarque de Holanda.
Conclusão: dois artistas que admiro, possuem mais coisa em comum do que possa imaginar a nossa vã filosofia.
BENITO DE PÉS NO CHÃO, condensa esse homem invulgar. A frase remete automaticamente a figura franzina, magra, de cor escura, descalço e sem camisa, num andar bamboleante, nas ruas da Mata Pequena.
Fui um dos poucos matinhenses a vê-lo calçado e vestido. Por trabalhar no banco, tive o privilégio de pagar seu benefício, quando se aposentou e depois, nas vezes que ia a agência. Lá não se permitia a entrada de alguém com o dorso a mostra
A primeira estrofe, sinaliza fundamentos do nosso herói: pés no chão, mão direita sobre o coração, desnudo e desapegado, o calção surrado e a busca para prosear.
Impossível dizer qual dessas peculiaridades seria a mais importante. O conjunto da obra, representa exatamente o ser. É assim que vem a memória, especialmente dos moradores da região que fomos originários.
A mão direita no coração, seria provavelmente, um sestro, costume, todos temos. Entendo sem apego, como uma condição franciscana. Benito, não possuía nenhum bem material, nenhum. Isso era demonstrado cabalmente nas roupas que não usava e no calção surrado.
A melhor parte, buscando conversação, configura inerente aptidão. Era no diálogo, no parlar, máximo sentido do termo parlamentar, coloquiar, que sua sabedoria de vida aflorava. Com a mão na boca, falando baixinho, disseminou um sotaque, que se tornou regra na rua onde morava e adjacências.
Uma prosódia tão especial, que não consigo retratar no papel ou computador. Sua beleza aparece plena e visivelmente na voz. Sem saber ler e escrever, criou um paradigma, rito de fala, dialeto. Que coisa maravilhosa, louvável.
A segunda estrofe, traduz o sentimento de satisfação àqueles que parassem para ouvi-lo, uma sensação de aprendizado As resenhas com Benito, independentemente da idade, cor, religião do interlocutor, proporcionavam positividade, riso, alegria, enlevava o espirito.
A terceira estrofe traz, dentre os que conheceram, saudades e reminiscências inauditas. O canto de Ademar, de Juvêncio, de Miguel, representam foneticamente, onde nascemos, crescemos, vivemos. Naquele espaço geográfico fomos afortunados além de quaisquer compreensões humanas.
O semblante de Benito, encostado no canto da casa de tio Ademar, de seu Miguel, de vovó Lola, conversando, proseando, contando piadas, pilherias, causos, ouvindo, conjura memórias indeléveis. Juntaria o canto de Juca Amaral, a calçada alta, a esse microcosmo.
Viviamos Felizes, acima de conceitos, concepções, teorias, sistemas, protocolos.
Erámos, Jamba, Kebinha, Enxuto, Palá, Quincas, Baixinho, Naldinho, Santinho, Kevinho, Barata, Purrichi, Patachita, Jaburu, Nerão, Fueiro, Capijuba. Não necessariamente moradores, mas, seres humanos relevantes a vida dos que ali trafegavam, fincando-se em corações e almas. Benito invadia esse mundo e unia ao canto da prefeitura, sua indispensável presença.
Vê-lo nos quatro cantos citados, equilibrando-se num único pé, com o outro a altura do joelho, estará perenemente gravada. Ensinando a cidade, sobre posse, agora acompanhada com felicidade.
Dois sentimentos emanavam: na indumentaria simples, despojada, quase inexistente, víamos alguém com imensa inteligência – posse-, e felicidade reluzente, contagiante.
Os versos finais trazem lágrimas mais uma vez. Aliás, esse texto foi todo banhado por elas.
A sincera homenagem de Kebinha, está simbolicamente assinada por todos os matinhenses, privilegiados por relacionar-se com Benito. Ele era mais que chegado, era literalmente, de casa. Sua frase mais famosa, “ arroz de planta”, “arrois de pranta”, em linguagem popular, denotava sua importância: não só representava a melhor semente, separada cuidadosa e carinhosamente, para perpetuar a lavoura de um produto tão importante a subsistência.
Especial para a cultura, nosso herói, além de “ arrois de pranta”, era também “ leite de onça”, coisas inusitadas, difíceis, quase impossíveis de achar
Seu jeito de tratar as pessoas, sempre com frases enaltecedoras, ficou famoso e virou chavão. Quando alguém faz elogios, dizemos: – Eita, mas hoje tu tá Benito!
Inúmeras vezes chegava até mim, normalmente pra deixar uma faca que colocara o cabo – era um bom artesão -, e dizia, -“ Olha, arrois, tu teve muita sorte de casar com essa mulher bonita”, e mais, ” Arrois, pode ter uma pessoa pra ser bom no caixa do banco, mais que nem tu, não”; ainda, “ arrois, tu pode até ser bom pra pescar, mas Nhô Ju é carga demais”, Nhô Ju, era papai; para mamãe, “ dona Maria, a senhora passa o melhor café da cidade”.
Agregava esse jeito maranhense do sarcasmo, da ironia Os elogios objetivavam receber algo em troca, sua expertise, causava no máximo, sensações de alegria. Um mestre na arte de encasquetar.
Homem inculto e sem acesso a estudos, foi autodidata no pleno sentido da palavra. Estruturou teorias psicanalíticas, sociológicas, como se tivesse lido Sigmund Freud ou Max Weber.
Sobreviver, dependia da forma como tratava seus semelhantes. A partir disso, estabeleceu um método onde pudesse tecer louvores. Aprendeu que a espécie humana é sensível a aplausos, exaltações, e ninguém, ninguém mesmo, está livre desta condição. Exercitou o clássico silogismo aristotélico.
Quem em sã consciência, não gosta de ter o seu ego amaciado, receber loas, palavras carinhosas?
Gênios como Benito, são muito raros, com as condições que o destino lhe permitiu, raríssimos, são a exceção das exceções. Vejo similaridades, guardando as devidas vênias, em Patativa do Assaré e João do Vale.
Esse homem simples, sem leitura, que punha cabos em panelas, facas e patachos, ia as casas de forno pedir farinha, levando uma meia pra colocar o produto; foi cabeleireiro, tocou flauta, frequentou festas de reggae, usava baba de mutamba nos cabelos; tinha uma memória fotográfica, capaz de reproduzir discursos, pregações, do advogado e presbítero da Igreja Presbiteriana Independente, José Conceição Amaral, ao pé da letra, do início ao fim.
Palmas, muitas palmas, a Benito, arroz de planta, leite de onça, que o “Dono do roçado”, – Deus -, mandou para encantar a vida dos matinhenses. Que possamos preservar, divulgar, se orgulhar da simbologia mítica e caprichosa, da sua biografia.
Que coisa linda de se ler e reviver, principalmente, em tempos de guerra, onde a paz das lembranças me fazem chorar de saudade, até de coisas que não vivi…
Estou chorando mesmo, mas é muito bom chorar de tanto aprender de gente.
Parabéns aos confrades Kleber e João Carlos. Amo vcs e suas escritas amorosas e recheadas de respeito ao próximo. 💕💕💕
Benito se eternizou. 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
A singularidade do texto nos deixou convencidos, de que vale a pena olhar com bons olhos, e traduzir comportamento tão majestoso de alguém serenamente humano – entrelaçados de predicados: o autor e o senhor Benito!
Muito lindo esse comentário sobre Benito, saudosa memória.😪
Belíssimo e oportuno texto, eu sou a prova viva dos galanteios de Benito. Sempre que me via na rua tinha um elogio, uma atenção amorosa que enaltecida a alma. Viva Benito.
Belíssimo e oportuno texto, eu sou a prova viva dos galanteios de Benito. Sempre que me via na rua tinha um elogio, uma atenção amorosa que enaltecia a alma. Viva Benito.