Artigo de João Carlos: Saudades, sensações que se refugiam na filosofia

Há uma tradição popular de que o termo saudade só existe no idioma português, fui pesquisar, e isto não é totalmente verdade. Por descender do latim, temos o equivalente em espanhol soledad, além do catalão, soledat. A diferença está no sentido. Enquanto nos outros grupos linguísticos românicos significa “ vontade de voltar ao lar” ou “ nostalgia da casa”, na língua de Luís de Camões ampliou seu raio de ação, transformando-se naquilo a qual hoje conhecemos:” a dor de uma ausência que temos prazer em experienciar”. Um sentimento de quase sadomasoquismo.

João Carlos

Cantada e decantada em prosa e verso, desde antes do tratado de Tordesilhas, a saudade permeia a história das nações lusófonas, mostrando facetas, emoções, sensações, alegrias, tristezas. As lembranças, reminiscências, memórias, ou quaisquer outros sinônimos que porventura possam ser incorporados ao léxico, têm povoado minha existência, minha alma, meu ser. Sob o prisma do conceito platônico da dualidade dos mundos, minhas saudades ocupam ambos: o sensível e o inteligível.

Sinto o cheiro do vinho de coco que mamãe fazia pra cozinhar o peixe trazido por papai, o odor forte da fumaça do molheiro que ele fumava, a fragrância do talco que vovó Lola usava, os eflúvios emanados das ampolas quebradas nas injeções que Tchem aplicava, da exalação que enchia nossa casa quando Antonia preparava o mingau para nossos filhos pequenos, das emanações do bicho de tucum salpreso, do balcedo pisado nos campos quando pescávamos de socó. Chego a ouvir creiam, Capijuba me chamando, Carromblé! A voz de dona Nizinha na igreja, as palavras de conforto das irmãs Vicência e Romana, nas nossas reuniões de oração.

Percebo na pele o líquido escorrendo do corpo quando saia do banho no igarapé da agua comprida, a aspereza do corrimão da escada que subia para o segundo andar do casarão de Juca Amaral, a dureza do assento do pau de arara que nos levava a Cachoeira, na longa viagem para São Luís, das furadas de espinho de marajá quando da construção de jirau no Bamburral do Galego, do calor forte nas queimas de coivaras. O gosto do refresco da casa de Flávio Penha, o inigualável sabor da manga do quintal de vovó Lola, o delicioso maracujazinho do mato, que apanhávamos no caminho do fio, os bacuris do quintal de Dezinho, os deliciosos bagos das jacas do quintal de dona Dinoca, estão a todo momento aparecendo pra mim.

Sonho tomando a garapa de seu Nilo, o mel do engenho de Belas Águas.Como esquecer o palato do ananás, comido quando vínhamos da roça,
devastados de fome? Do jenipapo da rua da madeira, do mingau de Ducarmo de Beatriz, do mocotó que dona Zica preparava? Chego enfim ao último dos sentidos, a visão. Recordo o filósofo Descartes, e sua dúvida metódica, penso: vejo ou revejo verdadeiramente as imagens que aparecem nitidamente nas minhas retinas? Ou serão miragens? “Meninos eu vi “, parafraseio o poeta maranhense Gonçalves Dias, no canto Juca Pirama: vi meu corpo tiritando com febre de impaludismo; eu e Sérgio Aroucha com uma sociedade de quebrar tucum e vender na casa de seu
Melques; o ronco continuo e irritante da toyota de Eugenio Furtado, toda coberta de lama, na porta de seu Miguel; Zeca meu primo, Torquato e Zé Pedro de Ulisses, vestidos de astronautas no desfile de 7 de setembro; Lauro chegando de caçar; dona Zeíla ensinando a tabuada, o bilhar de João Lima.

São cenas tão reais, causam inebriantes lembranças, que sufocam todos os sentidos, transcendendo ao mundo das ideias. Ou o inverso?Autônomas, possuem completo domínio sobre mim, aparecem e desaparecem ao seu bel prazer, sem tempo, hora ou espaço determinado. Normalmente vêm acompanhadas de lágrimas, num misto de dor e deleite impossíveis de explicação no âmbito da razão. Aparentemente, estão no campo metafisico. Surgem aos borbotões, e num efeito de quase abdução carregam meu espírito ao passado, as vezes distante, outras,recente. Tudo intercalado com intensa emoção.

Confesso: em tempos de pandemia, isolamentos, intolerâncias de diversas matizes, terraplanismos, negacionismos, sectarismos, estoicismos; refugiar-se na saudade, é extremamente importante para preservação da minha sanidade física e mental, meu Jardim de Epicuro.

João Carlos da Silva Costa Leite, nascido em Matinha, bancário aposentado , estudante do curso de Filosofia da UFMA. Membro fundador da AMCAL , Academia Matinhense de Ciências , Artes e Letras onde ocupa a cadeira 17.

3 respostas para “Artigo de João Carlos: Saudades, sensações que se refugiam na filosofia”

  1. … quando revivemos nossas histórias a partir das histórias contadas por outrem… Excelente texto do confrade João Carlos, a forma como é descrita nos leva ás nossas reminiscências… Quantas saudades!

    1. A saudade é a lembrança de momentos vividos ao lado de pessoas e/ou locais que nos marcam de uma forma tão intensa que nem os anos são capazes de nos fazer esquecer.

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    Jailson Mendes

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    Artigo de João Carlos: Saudades, sensações que se refugiam na filosofia
    Jailson Mendes / 30 de outubro de 2020
    Há uma tradição popular de que o termo saudade só existe no idioma português, fui pesquisar, e isto não é totalmente verdade. Por descender do latim, temos o equivalente em espanhol soledad, além do catalão, soledat. A diferença está no sentido. Enquanto nos outros grupos linguísticos românicos significa “ vontade de voltar ao lar” ou “ nostalgia da casa”, na língua de Luís de Camões ampliou seu raio de ação, transformando-se naquilo a qual hoje conhecemos:” a dor de uma ausência que temos prazer em experienciar”. Um sentimento de quase sadomasoquismo.

    João Carlos

    Cantada e decantada em prosa e verso, desde antes do tratado de Tordesilhas, a saudade permeia a história das nações lusófonas, mostrando facetas, emoções, sensações, alegrias, tristezas. As lembranças, reminiscências, memórias, ou quaisquer outros sinônimos que porventura possam ser incorporados ao léxico, têm povoado minha existência, minha alma, meu ser. Sob o prisma do conceito platônico da dualidade dos mundos, minhas saudades ocupam ambos: o sensível e o inteligível.

    Sinto o cheiro do vinho de coco que mamãe fazia pra cozinhar o peixe trazido por papai, o odor forte da fumaça do molheiro que ele fumava, a fragrância do talco que vovó Lola usava, os eflúvios emanados das ampolas quebradas nas injeções que Tchem aplicava, da exalação que enchia nossa casa quando Antonia preparava o mingau para nossos filhos pequenos, das emanações do bicho de tucum salpreso, do balcedo pisado nos campos quando pescávamos de socó. Chego a ouvir creiam, Capijuba me chamando, Carromblé! A voz de dona Nizinha na igreja, as palavras de conforto das irmãs Vicência e Romana, nas nossas reuniões de oração.

    Percebo na pele o líquido escorrendo do corpo quando saia do banho no igarapé da agua comprida, a aspereza do corrimão da escada que subia para o segundo andar do casarão de Juca Amaral, a dureza do assento do pau de arara que nos levava a Cachoeira, na longa viagem para São Luís, das furadas de espinho de marajá quando da construção de jirau no Bamburral do Galego, do calor forte nas queimas de coivaras. O gosto do refresco da casa de Flávio Penha, o inigualável sabor da manga do quintal de vovó Lola, o delicioso maracujazinho do mato, que apanhávamos no caminho do fio, os bacuris do quintal de Dezinho, os deliciosos bagos das jacas do quintal de dona Dinoca, estão a todo momento aparecendo pra mim.

    Sonho tomando a garapa de seu Nilo, o mel do engenho de Belas Águas.Como esquecer o palato do ananás, comido quando vínhamos da roça,
    devastados de fome? Do jenipapo da rua da madeira, do mingau de Ducarmo de Beatriz, do mocotó que dona Zica preparava? Chego enfim ao último dos sentidos, a visão. Recordo o filósofo Descartes, e sua dúvida metódica, penso: vejo ou revejo verdadeiramente as imagens que aparecem nitidamente nas minhas retinas? Ou serão miragens? “Meninos eu vi “, parafraseio o poeta maranhense Gonçalves Dias, no canto Juca Pirama: vi meu corpo tiritando com febre de impaludismo; eu e Sérgio Aroucha com uma sociedade de quebrar tucum e vender na casa de seu
    Melques; o ronco continuo e irritante da toyota de Eugenio Furtado, toda coberta de lama, na porta de seu Miguel; Zeca meu primo, Torquato e Zé Pedro de Ulisses, vestidos de astronautas no desfile de 7 de setembro; Lauro chegando de caçar; dona Zeíla ensinando a tabuada, o bilhar de João Lima.

    São cenas tão reais, causam inebriantes lembranças, que sufocam todos os sentidos, transcendendo ao mundo das ideias. Ou o inverso?Autônomas, possuem completo domínio sobre mim, aparecem e desaparecem ao seu bel prazer, sem tempo, hora ou espaço determinado. Normalmente vêm acompanhadas de lágrimas, num misto de dor e deleite impossíveis de explicação no âmbito da razão. Aparentemente, estão no campo metafisico. Surgem aos borbotões, e num efeito de quase abdução carregam meu espírito ao passado, as vezes distante, outras,recente. Tudo intercalado com intensa emoção.

    Confesso: em tempos de pandemia, isolamentos, intolerâncias de diversas matizes, terraplanismos, negacionismos, sectarismos, estoicismos; refugiar-se na saudade, é extremamente importante para preservação da minha sanidade física e mental, meu Jardim de Epicuro.

    João Carlos da Silva Costa Leite, nascido em Matinha, bancário aposentado , estudante do curso de Filosofia da UFMA. Membro fundador da AMCAL , Academia Matinhense de Ciências , Artes e Letras onde ocupa a cadeira 17.

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    Uma resposta para “Artigo de João Carlos: Saudades, sensações que se refugiam na filosofia”
    Cantanhede Zilda disse:30 de outubro de 2020 às 10:24
    … quando revivemos nossas histórias a partir das histórias contadas por outrem… Excelente texto do confrade João Carlos, a forma como é descrita nos leva ás nossas reminiscências… Quantas saudades!

    Responder
    maria herminia cantanhede coelho cardoso disse:30 de outubro de 2020 às 11:19Seu comentário está aguardando moderação. Esta é uma pré-visualização, seu comentário ficará visível assim que for aprovado.
    A saudade é a lembrança de momentos vividos ao lado de pessoas e/ou locais que nos marcam de uma forma tão intensa que nem os anos são capazes de nos fazer esquecer.

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